A propósito do 82.º aniversário do Partido Comunista Português

«Documentos únicos na história<br> do movimento revolucionário»

Este é um exemplo das se­mentes da Li­ber­dade que nos le­garam os ho­mens e as mu­lheres co­mu­nistas em meio sé­culo de crimes e pe­re­gri­nação pri­si­onal du­rante o re­gime fas­cista por­tu­guês

A re­pressão da ac­ti­vi­dade do PCP tem cons­ti­tuído, ao longo de dé­cadas, uma das pre­o­cu­pa­ções da classe do­mi­nante e do seu poder po­lí­tico que, da de­por­tação ao ho­mi­cídio, da tor­tura in­qui­si­to­rial à en­ce­nação de farsas em tri­bu­nais es­pe­ciais, da pro­pa­ganda an­ti­co­mu­nista à ma­ni­pu­lação in­for­ma­tiva da co­mu­ni­cação so­cial que sus­tenta, a tudo tem re­cor­rido para tentar calar a van­guarda da classe ope­rária e re­tardar o fim da ex­plo­ração ca­pi­ta­lista.

Bem cedo se ini­ciou a per­se­guição e prisão dos mi­li­tantes co­mu­nistas, ainda na 1.ª Re­pú­blica. E, aos mo­vi­mentos gre­vistas do pro­testo ope­rário, a de­mo­cracia par­la­mentar re­pu­bli­cana res­pondeu com a vi­o­lência po­li­cial, o cár­cere e o de­gredo.

Em 1926, com cinco anos de exis­tência na «le­ga­li­dade de­mo­crá­tica» vi­vida, cônscio dos pe­rigos que se avi­zi­nhavam, o PCP passou a de­frontar-se com o triunfo da re­acção fas­cista, o que exigia novas formas de luta, daí o ter mer­gu­lhado na clan­des­ti­ni­dade em Fe­ve­reiro - Março de 1927.

Su­ce­deram-se os de­cretos de cons­ti­tuição e su­ces­siva re­or­ga­ni­zação da po­lícia po­lí­tica, todos eles apos­tados em cons­truir e bu­rilar um apa­relho re­pres­sivo efi­ci­ente, bus­cando um mo­delo e uma téc­nica de re­colha de in­for­mação que fosse além da já ro­ti­neira bes­ti­a­li­dade nos in­ter­ro­ga­tó­rios dos «agi­ta­dores so­ciais». Mas, dado o vo­lume cres­cente dos de­tidos, e não ha­vendo ca­pa­ci­dade de aco­lhi­mento no sis­tema pri­si­onal comum, optou-se pela se­cular ex­pe­ri­ência da de­por­tação para os Açores ou para os ter­ri­tó­rios co­lo­niais.

Em 1933, a Di­ta­dura fas­cista ul­ti­mava a má­quina tri­tu­ra­dora dos di­reitos e ga­ran­tias para as dé­cadas vin­douras: em 11 de Abril, en­trou em vigor a Cons­ti­tuição do re­gime; em Agosto, criou a PVDE - Po­lícia de Vi­gi­lância e De­fesa do Es­tado; em Se­tembro, aprovou o Es­ta­tuto do Tra­balho Na­ci­onal com a fas­ci­zação dos sin­di­catos e, em No­vembro, pu­blicou o De­creto n.º 23203, dando corpo ao Tri­bunal Mi­litar Es­pe­cial, en­quanto apron­tava a de­por­tação de presos «per­ni­ci­osos», que em­bar­ca­riam em Pe­niche, com des­tino à For­ta­leza de São João Bap­tista, em Angra do He­roísmo.

Con­tudo, a es­tru­tura re­pres­siva do re­gime fas­cista não es­tava ainda con­cluída e, al­guns anos de­pois, quando o navio «Lu­anda» fun­deou no an­co­ra­douro da Achada Grande do Tar­rafal, des­car­re­gando os pri­meiros presos po­lí­ticos de­por­tados, inau­gu­rava-se, a 29 de Ou­tubro de 1936, o «pa­raíso pri­si­onal» in­ven­tado por Sa­lazar, para des­truir os seus ad­ver­sá­rios po­lí­ticos, como Al­fredo Cal­deira, Bento Gon­çalves e tantos ou­tros.

As forças mais re­ac­ci­o­ná­rias da so­ci­e­dade por­tu­guesa, ha­viam rein­ven­tado o te­ne­broso trá­fego oceâ­nico que ani­ma­riam, até 1954, com em­bar­ca­ções car­re­gadas de ho­mens des­ti­nados à des­truição fí­sica pelo tra­balho for­çado das «Bri­gadas Bravas», nas pe­dreiras de Cabo Verde.

Du­rante dé­cadas, o re­gime fas­cista re­cu­perou o sis­tema pri­si­onal me­di­eval no ce­nário das mas­morras de Angra, do Al­jube, de Pe­niche, do Re­duto Norte de Ca­xias e de­mais es­paços pri­si­o­nais con­ce­bidos como ja­zigos de vivos, onde om­breava o sa­dismo dos car­ce­reiros com o dos tor­ci­o­ná­rios da «in­ves­ti­gação», na mais ab­so­luta im­pu­ni­dade.

Em 48 anos de Di­ta­dura, de­zenas de mi­lhar de ho­mens e mu­lheres pas­saram pelas ca­deias do re­gime, e se numa pri­meira fase, a po­lícia po­lí­tica de­sen­ca­deou vagas de pri­sões em massa, pos­te­ri­or­mente, passou à pro­gres­siva se­lecção dos qua­dros an­ti­fas­cistas a deter, apos­tando mais na des­truição psi­co­ló­gica dos de­tidos do que na sua eli­mi­nação fí­sica na prisão. As de­zenas de ho­mi­cí­dios exe­cu­tados pela po­lícia po­lí­tica no cár­cere, como o de Ma­nuel Vi­eira Tomé e Ger­mano Vi­digal, deram lugar a as­sas­si­natos na via pú­blica, e assim tom­baram, entre ou­tros, Al­fredo Dinis e Dias Co­elho.

Con­tudo, o cal­vário per­cor­rido por mi­lhares de in­dó­mitos com­ba­tentes da Li­ber­dade, onde os mi­li­tantes co­mu­nistas foram pro­gres­si­va­mente cons­ti­tuindo a mai­oria, não pode ser en­ten­dido como um ca­minho feito de si­lên­cios, numa re­clusão pas­siva aqui e ali in­ter­rom­pida por au­da­ci­osas fugas ou ten­ta­tivas mal su­ce­didas. Pelo con­trário, são múl­ti­plos os exem­plos de fir­meza pe­rante o ini­migo de classe, como o do em­barque em Ou­tubro de 1930, onde os presos po­lí­ticos e a mul­tidão con­cen­trada na praia de Santos em Lisboa, en­to­aram a In­ter­na­ci­onal.

Nas con­di­ções du­rís­simas do re­gime pri­si­onal, o pro­testo in­di­vi­dual ou co­lec­tivo foi uma cons­tante, ates­tado pelos mi­lhares de cas­tigos re­gis­tados nas fi­chas pri­si­o­nais, e con­fir­mado pelas grandes lutas le­vadas a cabo pelos presos em Pe­niche (1949-1950) e a greve de fome de 8 a 22 de Ou­tubro, em Ca­xias (1954). Su­ce­deram-se, os abaixo-as­si­nados de pro­testo contra o re­gime pri­si­onal, a ar­bi­tra­ri­e­dade dos guardas, a falta de hi­giene, a par de ex­po­si­ções de de­núncia da si­tu­ação dos presos po­lí­ticos em Por­tugal à co­mu­ni­dade in­ter­na­ci­onal, em Agosto de 1961, como consta na carta en­viada à Con­fe­rência da Eu­ropa Oci­dental para a am­nistia aos presos e exi­lados por­tu­gueses, de 130 presos em Ca­xias.

Mas, nem o Ca­lejão, a Po­terna ou as Furnas do Monte Brasil em Angra do He­roísmo, nem as Ca­sa­matas de Pe­niche, a Fri­gi­deira do Tar­rafal, os lô­gue­bros sub­ter­râ­neos do Re­duto Norte de Ca­xias ou os Curros do Al­jube (*), foram su­fi­ci­entes para calar ou abater o es­pí­rito de sa­cri­fício, a ab­ne­gação e a co­ragem moral e fí­sica dos muitos co­mu­nistas que por ali pas­saram.

Ato­lados em ex­cre­mentos nas mas­morras de Angra, su­fo­cados pela saúna pes­ti­lenta do Tar­rafal, alu­ci­nados pela tor­tura do sono e da es­tátua ou mas­sa­crados por es­pan­ca­mentos - du­rante longos anos de dias som­brios e iguais - esses ho­mens e mu­lheres in­te­grados nas or­ga­ni­za­ções pri­si­o­nais co­mu­nistas, con­se­guiram er­guer entre si, es­paços de so­li­da­ri­e­dade e pro­moção cul­tural, al­fa­be­ti­zando ope­rá­rios e cam­po­neses, onde os mais ha­bi­li­tados mi­nis­travam aulas de ma­te­má­tica, his­tória, lín­guas es­tran­geiras, etc., pro­cu­rando tirar par­tido do tempo de clau­sura para me­lhor ape­tre­char para a luta, aqueles que a so­ci­e­dade eco­no­mi­ca­mente ex­cluíra do seu sis­tema edu­ca­tivo.


É nessa linha que se in­serem os «do­cu­mentos únicos na his­tória do mo­vi­mento re­vo­lu­ci­o­nário», qua­li­fi­cação dada num edi­to­rial do pres­ti­giado pe­rió­dico francês di­ri­gido por Henri Bar­buse, ao con­sa­grar uma pá­gina aos jor­nais es­critos nas pri­sões por­tu­guesas (**), sob a man­chete:


«Tes­te­munho de gran­deza re­vo­lu­ci­o­nária»

«Por­tugal...
País de ar­vo­redo po­li­cro­mado, de vi­nhedos e de can­ções...
País de pa­dres, e de cam­po­neses es­fo­me­ados; de grandes la­vra­dores e de de­sem­pre­gados...
País que há nove anos, a mão mor­tí­fera dum di­tador fas­cista, es­tran­gula...
Mas o cris­ti­a­nís­simo ódio de Sa­lazar não con­segue amor­daçar este país que, um dia, será de novo um jardim da cul­tura hu­mana.
Ex­pulsa da luz do dia, zum­bindo em se­gredo nos bairros pro­le­tá­rios das ci­dades e nos ca­se­bres dos cam­po­neses, ele­vando-se acu­sa­dora pe­rante os juizes ig­nó­beis, ge­mendo sob a tor­tura dos car­ce­reiros, a ver­dade do fu­turo vive em Por­tugal.
Ima­ginai vós estes presos po­lí­ticos que, ar­ris­cando a sua li­ber­dade, a sua saúde e a sua vida, le­van­taram o es­tan­darte do com­bate e, es­ti­o­lando-se du­rante anos in­teiros, na noite es­go­tante das en­xo­vias me­di­e­vais, se­pa­rados do mundo ex­te­rior por uma pa­rede de chumbo, con­ti­nuam a luta, so­li­dá­rios, com os seus ir­mãos em li­ber­dade. Uma folha de papel, um lápis, uma pena – que di­fi­cul­dades para obtê-los – mas eles en­con­tram estes ins­tru­mentos de tra­balho e es­crevem.
E não são so­luços de seres des­fa­le­cidos; não são gritos de de­ses­pero; os presos po­lí­ticos de Por­tugal editam em plena prisão, es­critos pelos seus pró­prios pu­nhos, jor­nais de com­bate. «Jor­nais es­critos por co­mu­nistas, para co­mu­nistas», se in­ti­tulam estes jor­nais que, ao preço de mil pe­rigos, cir­culam de cela em cela, de prisão em prisão. A des­co­berta do autor dum destes jor­nais – e não é fácil negar-se o que é es­crito pelo pró­prio punho – sig­ni­fica um pro­lon­ga­mento da pena por meses e anos.
A luta dos presos po­lí­ticos re­vo­lu­ci­o­ná­rios nos di­fe­rentes países re­veste, é certo, formas múl­ti­plas e é rica de exem­plos de he­roísmo. Con­tudo, estes jor­nais dos presos por­tu­gueses cons­ti­tuem do­cu­mentos únicos na his­tória do mo­vi­mento re­vo­lu­ci­o­nário.» 

Monde, 12 de Abril de 1935


 

(*) Ins­ta­la­ções pri­si­o­nais

CALEJÃO - an­tiga ca­va­la­riça de­sac­ti­vada, dadas as más con­di­ções para es­ta­bu­lação dos ani­mais, na a For­ta­leza de São João Bap­tista, em Angra do He­roísmo.
PO­TERNA - mas­morra sub­ter­rânea em forma de poço, sem ven­ti­lação nem sa­ne­a­mento, cujo acesso se fazia des­cendo vinte e dois de­graus, a For­ta­leza de São João Bap­tista, em Angra do He­roísmo.
FURNAS - ca­vernas do Monte Brasil, sob a For­ta­leza de São João Bap­tista, em Angra do He­roísmo.
CASAS-MATAS - abrigos da for­ti­fi­cação mi­litar que ficam al­guns me­tros abaixo do nível do mar, sem luz e al­tís­simos ín­dices de hu­mi­dade, onde presos po­lí­ticos e ra­ta­zanas dis­pu­tavam as parcas re­fei­ções, na For­ta­leza de Pe­niche.
FRI­GI­DEIRA - cons­trução em ci­mento ex­posta ao Sol, no campo de con­cen­tração do Tar­rafal, com 7 x 3,5 m, di­vi­dida in­ter­na­mente em dois com­par­ti­mentos de quatro passos, onde a en­trada de luz e a ven­ti­lação se fazia por cinco pe­quenos ori­fí­cios na porta de ferro, e uma fresta junto ao tecto.
CURROS - celas de 2 x 2,5 m sem ja­nelas, na Ca­deia do Al­jube, em Lisboa.


(**) Jor­nais pri­si­o­nais ma­nus­critos aqui re­pro­du­zidos:

Bo­letim Inter-Pri­si­onal - Órgão da cé­lula co­mu­nista da For­ta­leza de Pe­niche - 1935
O Tra­balho - Dos co­mu­nistas em re­clusão na Pe­ni­ten­ciária (de Lisboa) - 1935
Po­tenkin - Órgão dos presos co­mu­nistas ex-ma­ri­nheiros (Pe­niche) - 1935
Pavel – Órgão teó­rico dos jo­vens co­mu­nistas presos em Pe­niche - 1936
O Con­de­nado Ver­melho - Órgão das cé­lulas co­mu­nistas de Mon­santo - 1936
O Fogo - Re­vista teó­rica da cé­lula co­mu­nista da For­ta­leza de Pe­niche - 1936
Carril Ver­melho - Órgão dos presos co­mu­nistas da CARRIS (Al­jube) - 1936
Frente Ver­melha - Bo­letim Pri­si­onal de Angra do He­roísmo - 2ª Série -1937